Wednesday, May 9, 2012

FATOS QUE ANTECEDERAM À HECATOMBE DE GARANHUNS EM 1917


Em brejão, na primeira semana de 1917, chuvosa, as noites caíam precedidas de forte cerração e frio intenso. A Vila de Brejão com pouca iluminação na sua principal rua, com dois lampiões apenas.
Mesmo assim, apresentava um movimento anormal. Logo ao escurecer, à casa do então chefe local chegavam correligionários. Talvez para conversarem sobre as eleições que já estavam na fase das apurações. Na loja do Cardeal, alguns amigos e fregueses observavam aquele esquisito entrar e sair de gente na casa do Tenente Inácio. A oposição, no distrito mais populoso do município, estava arrigimentada pelos Figueiras e pelo antigo subdelegado Capitão Américo. Mas o que mais prejudicou o trabalho rendoso do "bico de pena" nas eleições, foi um cunhado do Cardeal, dono da Fazenda Baraúnas, lá para os lados de Poço-Comprido, distante umas seis léguas. Meteu até o bico nas atas.
Os amigos do Tenente Inácio já se julgavam vencedores no pleito realizado para Prefeito e Conselheiros Municipais, já se falava em vingança. E chegou na loja do Cardeal, o Quinquim com as novidades:
- Tônho, a coisa não tá boa, não. Os urucubacas tão danados com Nonô Batista, pro mode o trabaio dêle nas inleições. Já arranjaram uma briga de terra com um vizinho e adirrubaram um cercado de Nonô. Teu primo matou um boi ladrão. Tá feia a coisa, pois inté já há um precatore com Neco.
A notícia foi uma bomba na Vila de Brejão. Na casa do Capitão Américo entravam e saíam amigos, um portador foi mandado para a cidade. Sabiam que Nonô resistiria à prisão. Passariam a noite em claro. A segunda-feira amanheceu ainda muito fria, apesar de janeiro, com uma neblina úmida. O gado já passava para o campo, deixando os currais improvisados nas proximidades da Vila de Brejão, enquanto vaqueiros, com toda a sua indumentário, galopavam os seus cavalos e partiam para os sítios distantes. Os trabalhadores das roças conduziam aos ombros a enxada e a foice, seus únicos instrumentos de trabalho.
Na casa do Inspetor de Quarteirão Neco Cobra, epíteto que bem merecia pela sua valentia traiçoeira, já havia movimento. Ele se preparava para chefiar a Tropa de Cachimbos. Homem afeito a essas diligências.
Serviço de responsabilidade e confiança no sertão, sentia-se vaidoso com a incumbência quase criminosa, que lhe foi confiada por homens da cidade. Só temia encontrar cangaceiros no caminho, por causa das brincadeiras deles. Não podiam ver cachimbos, que não quisessem aplicar um cristel de fumo de rôlo. Eles diziam: Pra cachimbo só fumo brabo. Era comum as diligências das tropas de cachimbos, um costume singular do sertão. No seu trágico e absurdo, às vezes se tornava um episódio humorista. Mas desta vez a diligência seria motivo para a maior tragédia na cabeça da sua comarca, a Hecatombe de Garanhuns em 1917.
Neco Cobra já saiu da camarinha como um verdadeiro e experimentado cangaceiro. De alpargatas sertanejas, chapéu de couro quebrado na testa, cartucheira e punhal à cintura; e com rifle papo-amarelo à tira-colo. Os companheiros, muito mal vestidos e mal armados, amanheceram o dia na porta do chefe. Neco Cobra era um caboclo alto, espadaúdo, com cara de poucos amigos, violento e atrevido cabra sertanejo.
Os cinco cachimbos, gente magra, de chapéus de palha de catolé, com espingardas de caça, de dois canos, facas-de-ponta, tendo nos bornais, misturados com cartuchos, pedaços de fígado de boi e de carne-de-sol, assados. Eles não sabiam o tempo da diligência, que poderia ser logo ou não.
Sinhá Totonha, mulher de Neco, que também não era uma boa bisca, chegou à porta e convidou os cabras para entrarem. Foi servido um café com cuscuz e com batata-doce. O chefe já os esperava para um conversa. E foi dizendo: Nós vamo fazê um serviço de orde do Coroné Júlio. vamo inté às Braúnas, buscá o Nonô batista. Nós não semos bôbo, não, de cuidá que é chegar a pegá o home. Só se fô de insuprêsa. Vamo convencê êle pra vim com a gente na paz, porque é orde do Dotô Juiz, que ca Justiça não se brinca, não. Vamo trazê o Nonô pra qui e as depois pro Granhum. A precatora tá comigo.
Nós agora semo otoridade. O Chico-Pelado, um careca muito magro e muito manhoso, não se conteve e falou: O chefe tá inseguro. Nós fazemo o trabaio. Se o home arreagi, nós amarremo êle. Pra isso já truce duas braças de corda. Neco-Cobra, embora homem que só falava o necessário, entusiasmou-se, e disse: Antonce, nós vambora. Se a noite cair na instrada, nós vamos pôsa bem pra cá das Braúnas, embaixo das juremas que lá tem. Não vamo inchegá noite escura, pro mode a cachorrada da fazenda. Vai dá em cima de nós e vão metê fogo na gente. Ninguém pode falá dos abelhudo qui pergunta pra onde nós vamo. Só iludimento dos safados. Bôca fechada.
E la seguiram eles pela estrada empoeirada do Poço-Comprido, em meio a uma caatinga espinhenta. Numa marcha batida seguem com o Capitão a frente, atrás um do outro. O Capitão, como era conhecido o chefe dos cachimbos, levava o rifle ao ombro e na mão esquerda, para que todos o vissem, o documento precatório. Os trabalhadores do campo os vaqueiros, a beira da estrada, paravam o trabalho e faziam comentários: Oxente! Êles vai em missão dotoridade. E é pra longe, pois leva cabaças d'agua e bornais de bode. São rastejador da Justiça... A tropa de cachimbos estaca em todas as bodegas que encontra no caminho. Pedem pinga. O Capitão bebe primeiro e passa o copo aos demais. Não paga porque é autoridade e viaja em nome da lei. Ninguém pergunta aonde eles vão, nem eles dizem a procedência ao destino. A missão é reservada. Nenhuma autoridade a importuna. Só uma força poderá deter ou desmanchá-la em um minuto: notícia de um grupo de cangaceiros na estrada. A tropa de cachimbos corrompe-se em meio da caatinga espinhenta e se desmílingue todas, nos secessos do sertão.
Não sabiam eles que aquele serviçozinho tão à toa, que tinham feito tantas vezes, iria causar a maior tragédia aos seus próprios amigos.
A tarde já tinha avançado muito e eles ainda estavam bem distante das Baraúnas, já nas terras de Papa-Caça. Encontravam conhecidos em todas as quebradas, cumprimentavam-se e seguiam o seu destino. Mas o Chico-Pelado, experimentado "bucho de piau", em lugar de responder aos bons-dias pela estrada, dizia apenas, maliciosamente: Nonô Batista. E era só, quem quisesse que entendesse, porque ele já estava aliviado. E por infeliz coincidência, cruzou com um sobrinho do Batista e assim respondeu ao seu cumprimento. O moço virou o alazão esquipador e zás para trás. O Pelado se assustou, mas ficou calado, murcho e assustado. Ele sabia do que era capaz o Neco-Cobra. Seguro o bendito passou para o fim da tropa, com olho de xexéu, arrependido.
Na passagem de um riacho, afluente do Mundaú, apenas um quilômetro do destino, numa curva da mata recentemente roçada, lugar de pedras soltas, com xique-xiques desgalhados para o chão, como a lembrar os seta palmos tão temidos; facheiros apontando para o céu, coisa difícil para Neco-Cobra, e as macambiras dizendo que ali não se podia correr, preparou Nonô Batista a tocaia para a Tropa de Cachimbos, que vinha feliz e orgulhosa pela estrada do Sertão, naquela capoeira braba.
Uns dez homens bem armados os cercaram facilmente, sem um tiro nem pio. Ao Neco-Cobra e a sua gente desarmaram e amarraram, exceto ao Chico-Pelado. Meteram as armas em um saco, sobre a cabeça do Pelado. Procederam a contradiligência em completo silêncio, à moda sertaneja. O capitão, humilhado na sua autoridade, bufava de raiva.
Tocaram para Poço-Comprido, onde entregaram os cachimbos e o seu armamento ao Subdelegado. Este remeteu-os para Bom Conselho. Os homens estavam ainda amarrados, tudo seria fácil. Foram entregues ao Coronel Zé Abílio.
Houve escândalo, um reboliço danado, não só na Vila de Brejão como também em Garanhuns. O Capitão Sales Vilanova(foto), jornalista correspondente de jornais da capital mandou para o Recife notícias detalhadas sobre os fatos acontecidos. Os comentários na feira foram arrasadores e que dias depois custou uma grande pisa em plena rua ao Capitão Sales Vilanova. Desencadeando a Hecatombe.

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